sexta-feira, 31 de julho de 2009

Alma paulista*

Foi por me sentir genuinamente desidentificado com qualquer sentimento nacionalista ou patriótico, ou com qualquer espécie de regionalismo, que escrevi e cantei coisas como: "Não sou brasileiro, não sou estrangeiro / Não sou de nenhum lugar, sou de lugar nenhum, sou de lugar nenhum / Não sou de São Paulo, não sou japonês / Não sou carioca, não sou português / Não sou de Brasília, não sou do Brasil / Nenhuma pátria me pariu", ou "Riquezas são diferenças", ou "Aqui somos mestiços mulatos cafuzos pardos mamelucos sararás crilouros guaranisseis e judárabes / Orientupis orientupis / Ameriquítalos luso nipo caboclos / Orientupis orientupis / Iberibárbaros indo ciganagôs / Somos o que somos, somos o que somos / Inclassificáveis, inclassificáveis".

Ao mesmo tempo, creio só terem sido possíveis tais formulações pessoais pelo fato de eu haver nascido, crescido e vivido sempre em São Paulo. Por essa ser uma cidade que permite, ou mesmo propicia, esse desapego para com raízes geográficas, raciais, culturais. Por eu ver e viver São Paulo como um gigante liquidificador onde as informações diversas se misturam, se atritam gerando novas fagulhas, interpretações, exceções.

Por sua multiplicidade de referências étnicas, linguísticas, culturais, religiosas, arquitetônicas, culinárias...

São Paulo não tem um símbolo que dê conta de sua diversidade. Nada aqui é típico daqui. Não temos um corcovado, um berimbau, uma arara, um cartão postal. São Paulo são muitas cidades em uma — do Brás a Pinheiros, do Morumbi à Freguesia do Ó, de Osasco ao Jardim Europa, da Consolação ao Pacaembú, da Móoca a Higienópolis, do Paraiso ao Ipiranga, da Vila Madalena à Liberdade. De um bairro a outro pode mudar tudo — a paisagem, os rostos, os letreiros, as praças, as lojas, o jeito, os sotaques.

Sempre me pareceram sem sentido as guerras, as fileiras nazistas, os fundamentalismos, a intolerância ante a diversidade, a xenofobia nacionalista, a "macumba para turista" de que falava Oswald de Andrade. O nacionalismo sempre me pareceu ligado ao desejo de poder, enquanto as manifestações que positivam a convivência com as diferenças são para mim sintomas de potência individual diante do mundo.

Assim, fui me sentindo cada vez mais um cidadão do planeta; sem nacionalidade, sem raça, sem religião. Acabei atribuindo parte desse sentimento à formação miscigenada do Brasil.

Acontece que a miscigenação brasileira parece ter se multiplicado em São Paulo com feições de imigrantes de muitos outros povos (judeus italianos coreanos africanos árabes alemães portugueses ciganos nordestinos indígenas latinos etc.), num ambiente urbano que foi crescendo para todos os lados, sem limites.

Até a instabilidade climática daqui parece haver contribuido para essa formação aberta ao acaso, à imprevisibilidade das misturas.

Ao mesmo tempo temos preservados inúmeros nomes indígenas designando lugares, como Ibirapuera, Anhangabaú, Butantã, etc. Primitivismo em contexto cosmopolita, como quis e soube vislumbrar Oswald.

Não é a toa que partiram daqui várias manifestações culturais que souberam conceituar e positivar essa condição de hibridez antropológica, social e cultural. A Antropofagia, a poesia Concreta, a Tropicália ("um neo-antropofagismo" — segundo depoimento de Caetano na época — gestado em São Paulo, apesar dos inúmeros protagonistas baianos).

São Paulo fragmentária, com sua paisagem recortada entre praças e prédios; com o ruído dos carros entrando pelas janelas dos apartamentos como se fosse o ruído longínquo do mar; com seus crepúsculos intensificados pela poluição; seus problemas de trânsito miséria e violência convivendo com suas múltiplas ofertas de lazer e cultura; com seu crescimento indiscriminado, sem nenhum planejamento urbano; com suas belas alamedas arborizadas e avenidas de feiura infinita.

São São Paulo meu amor, como quis Tom Zé.

São Paulo meu horror, como no Pavilhão 9.

São Paulo de muitas faces, para que façamos a nossa, a partir de sua matéria múltipla e mutante.

Talvez isso constitua alguma forma de identidade.



in “Alma Paulista”, Textos de Arnaldo Antunes e Tom Zé, Fotografias de Vanderlei Guedes, Ricardo Teles, Romulo Fialdini, Patrícia Cardoso, Caludio Edinger, Alerto de C. Alves, Cristiano Mascaro, Alvaro Maya, Carlos Goldgrub e Lau Polinésio. Abooks Editora, São Paulo, 2000.

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